Na terra e no cais
Coluna no GLOBO
Míriam Leitão - 13.5.2012
Rugendas: Mercado de escravos do Valongo - RJ
Domingo passado, fui andar com historiadores pelo Cais do Valongo, pelo antigo mercado de escravos e pelo Cemitério dos Pretos Novos. Revisitar a História que aflora no Rio impressiona. A brutalidade do sistema escravagista é maior do que temos em mente. Um milhão de escravos desembarcaram na cidade. Os saudáveis eram levados para o Mercado do Valongo; os que morriam nos primeiros dias, jogados num terreno.
O Centro do Rio está todo sendo escavado para a reforma do porto, e foi assim que encontraram o famoso Cais do Valongo, principal porta de entrada de escravos no Brasil. Do Rio, eram distribuídos para a mineração, as plantações de café e usinas de açúcar.
Da caminhada, fiz um programa para a Globonews junto com o jornalista Cláudio Renato. Conversei com o historiador Cláudio de Paula Honorato, autor de dissertação de mestrado na Universidade Federal Fluminense (UFF) sobre o que acontecia com os que chegavam saudáveis, a venda no mercado; e com Júlio César Medeiros, autor de um livro, fruto do seu mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o título “À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro”. É possível ver, no buraco aberto no chão, misturados à terra, arcadas dentárias, ossos, pedaços de crânios.
— Um viajante que esteve aqui entre 1812 e 1824, Freyress, escreveu que os escravos que morriam não eram sepultados, mas jogados “à flor da terra”. Qualquer chuva descobria os corpos. Eram descartados uma vez por semana. De vez em quando eram queimados, e os ossos, quebrados, para caber mais — disse Júlio.
Essa forma de descarte trazia uma dor para além da vida. Pela cultura africana, o rito de passagem e o sepultamento eram a garantia de que aquela pessoa iria se encontrar com seus ancestrais. Sem ritual e insepultos estavam condenados à solidão eterna, pela explicação de Júlio Cesar.
Havia uma dúvida sobre se era possível ter tantos corpos num lugar pequeno, mas as escavações mostraram que só no pequeno espaço da Rua Pedro Ernesto, debaixo daquela casa, é que foram encontrados ossos. Júlio chegou a um número espantoso do período que ele estudou. Os registros provaram que ali foram jogados entre os anos de 1824 e 1830 exatos 6.122 corpos de recém-chegados. Eram chamados “novos” porque nunca tinham sido “usados”. Eram “coisas novas”. Não tinham nome, porque não chegaram a ter donos. Morriam pelas condições precárias da viagem. Há cemitérios de escravos em outras partes, mas aquele é único porque só tem africano, recém-chegado. Pode ser fonte de análise de DNA para se saber mais sobre de onde viera
Ela tem um nome grande, Ana Maria de la Merced G. G. G. dos Anjos. Maior ainda, a sua tarefa: ter dentro de sua casa um dos mais preciosos sítios arqueológicos da escravidão brasileira. Sua vida foi revirada depois desse achado. A obra foi paralisada, e houve um tempo de curiosidade jornalística. Depois da confirmação arqueológica vieram alguns historiadores, como Júlio. Mas só em 2011, uma década e meia depois, é que se organizou o espaço com um memorial e uma pequena sala de palestras. Dona Merced abria sua casa à visitação para os poucos curiosos dessa história aflorada no chão da casa. O setor público não ajudava e ainda ameaçava de expropriação. Não sabe agora se será renovado o convênio que considera o local “ponto de cultura”. Se não for renovado, acaba o pequeno subsídio para a manutenção do local.
Ela se emociona, guarda tudo com carinho, cedeu parte da sua casa para preservação e sonha com mais proteção através do instituto que criou, sem fins lucrativos.
— A sensação que eu tenho é que fui escolhida para proteger isso. Não entendo por quê, me sinto fraca para a missão, mas protejo. Aqui estão restos de muita gente, muitas delas, crianças. Aqui está um pedaço da história de um crime contra a humanidade — diz.
O que mais espanta Cláudio Honorato, que estudou o mercado, é como toda a história foi esquecida. Está, como diz, em teses que vão pegando poeira nas universidades. Durante muito tempo acreditou-se no mito de que tudo havia sido queimado por Ruy Barbosa, quando ele destruiu os documentos fiscais para impedir que os donos de escravos pedissem indenização após a abolição. A historiadora americana Mary Karasch, nos anos 1980, faz parte da nova onda de busca de documentos em outros arquivos. As escavações abrem nova frente de trabalho.
Cláudio Honorato conta que o mercado ocupou mais do que a atual Rua Camerino, segundo a descrição do Marquês de Lavradio, o vice-rei. Há ainda casarões daquela época em pé. Neles, as famílias viviam no segundo andar, e embaixo havia galpões onde eles estavam expostos para a venda. Charles Brand, um viajante, relatou que num desses viu 300 crianças.
— Em alguns navios, o total de crianças podia chegar a 60% do total — disse Honorato.
No Rio, a História do Brasil está à flor da terra, e as escavações têm revelado preciosidades. Que sejam preservadas. Visitar a História é a melhor forma de entender o presente e mudar o futuro.
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